• Este projeto foi contemplado como o XII Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia 2012

    Fotógrafos convidados - Eraldo Peres

    A Tradição da Pega de Boi

     

    Eraldo Peres | junho 2016

     

    O dia amanhece com um colorido diferente no Sitio Lages, na cidade de Serrita, no sertão pernambucano. As cores amarronzadas dos gibãos de couro se misturam com os galhos secos da caatinga, pintando o cenário para a realização de mais uma pega de boi de porteira.

    Aos poucos vão surgindo no meio da mata os vaqueiros com suas vestes de trabalho, seus cavalos imponentes e seus cantos de aboio. O curral começa a receber as centenas de gados destinados a fazer trilha na caatinga, em uma sequência de movimentos e galopes dos seus perseguidores, um jogo que lembra ao mesmo tempo um bailado e uma perseguição feroz pelo prêmio pretendido, o colar de couro que é levado no pescoço pelo gado solto do curral. Vaqueiros e público vão aos poucos ocupando as cercas dos currais e as arquibancadas improvisadas para, como nos antigos coliseus, lançarem seus olhares e torcidas hora pela sagacidade do boi em fuga, hora pelas habilidades dos vaqueiros destemidos a enfrentar os espinhos da caatinga a cortar suas faces em busca do animal fujão.

    Após um breve silencio surge a vós de Nenem de Duqueira, característico locutor de pega, com sotaques próprios da vida sertaneja e sentado sobre uma torre montada na entrada principal do curral, chama a atenção de todos e anuncia o inicio da peleja entre o homem e o gado, ”que vença o mais rápido”. E logo, numa mistura de canto e lamento, vêm as primeiras chamadas para a competição que inicia “Bora, bora, bora, soltou o boi …” .                                      O vaqueiro João de Cazuza, 56 anos, vestido com o seu tradicional Gibão e pronto para participar das corridas de pega lembra que “quando criança acompanhava meu pai e meu avô que levavam o gado pros lados do sertão do estado do Ceará, eram mais de quatro dias de viagem, tocando a boiada no meio da mata”. Com tom de orgulho, Seu Cazuza, como é conhecido entre os vaqueiros fala: “A primeira vez que vesti o Gibão eu tinha 15 anos, foi como um troféu para mim. A partir daquele momento senti que já era um vaqueiro, a noite quase não dormi de tanto nervoso”.

    Tradição secular do nordeste brasileiro, a vaquejada se impõe como resistência da vida sertaneja, mantendo crianças, jovens e adultos reunidos em torno do seu cotidiano e das suas histórias. Personagem tradicional da cultura nordestina, o vaqueiro, mestiço do colonizador branco com o índio nativo, surge no Brasil  no fim do Sec. XVI, durante os ciclos de expansão da criação de gado nos sertões do Nordeste.

    A Pega de Boi é a forma tradicional de aparte do gado na Caatinga, vegetação típica do sertão nordestino. Hoje, faz parte dos circuitos de vaquejadas, tornando-se também uma atividade recreativa e competitiva, com característica de esporte, onde a dupla de vaqueiros se lançam no mato para pegar o boi solto. O gado deve ser perseguido e derrubado pela cauda, para que seja retirado seu colar de couro com o número que o identifica e entregue aos juízes para que o tempo seja cronometrado. Vence a dupla que realizar a pega em menor tempo.

    Sentado sobre a cerca do curral, Deda Vaqueiro, 54 anos, e seu filho Thiago, 19 anos, conversam sobre o trabalho com o gado. Seu Deda lembra: “A vida de vaqueiro não é fácil, é de muito trabalho, muita luta. Não pude estudar, tudo era mais difícil no meu tempo. Hoje é mais fácil, mas quem gosta do trabalho com o gado acaba deixando os estudos e seguindo a profissão”. Seu filho Thiago, que participa das corridas de pega de boi, já tomou sua decisão na vida: “Cresci ouvindo as historias de vaqueiro do meu pai e dos meus tios. Sempre sonhei em vestir o gibão de couro e poder correr nas pegas de boi, tenho orgulho de ser vaqueiro”. E completa, “prefiro a vida do curral, do trabalho com o gado, é melhor do que estar na cidade sem ter o que fazer”.

    Ao redor do curral, juntam-se jovens e velhos, homens e mulheres, para contar suas façanhas e histórias sobre as aventuras das vaquejadas. São velhos vaqueiros que forjaram suas vidas em torno do trabalho do gado, dos currais e da vida na secura dos galhos da caatinga. O dia vai terminando e o pôr-do-sol colorindo o céu. Grupos de vaqueiros vão deixando o Sitio Lajes, com orgulho de terem mantido a sua tradição e participado de mais uma corrida de pega de boi. Com suas vestes de couro e o tradicional chapéu se despedem do eterno companheiro, o boi, que agora pasta solto na mata para no dia seguinte voltar aos currais.

    Esta viagem fez parte da expedição de pesquisa e documentação das manifestações culturais – Rota dos Sertões – Projeto Filhos da Terra – Um olhar sobre a diversidade cultural brasileira.